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domingo, 15 de agosto de 2010

"Entre nós e o alheio, sempre vemos o outro, mas nunca o 'eu', que há no meio"

E ele acordou no meio da noite assustado. Sua cabeça lhe era arracanda fora de seu pescoço com um riso de gozo e alegria como uma criança que acaba de ganhar um brinquedo novo, o sangue vermelho e quente lhe saia pelos poros como um visco mal-cheiroso numa tarde de verão. Era doce sua carne, tão humana quanto poderia ser. Aquela forma angelical de urso de pelúcia era o seu pior demônio, mesmo sendo insano tinha medo. Como um urso de pelúcia poderia arrancar-lhe a cabeça? Pois sim, poderia sim, ele era grande, ele era forte. Levantou-se tonto, sem ligar as luzes, tateou as paredes, abriu a geladeira e assim em um único trago bebeu um copo de requeijão cheio de vinho. Era para a cabeça. Voltou para cama. Esse sonho era recorrente, como ainda tinha algum efeito é o que não sabia responder.
Seus vizinhos reclamavam ao sindico de seu único cd, aquele cd surrado que escutava todos os dias desde os 15 anos, que refão seria melhor que aquele?
"I love myself better than you
I know it's wrong, so what should I do"

Sua rebeldia adolescente era criticada por todos a sua volta, suas constantes bebedeiras eram motivo de constante preocupação de ninguém, afinal quem se importaria com um mero fantasma semi-morto de uma metrópole.

O vinho foi capaz de tirar seus pensamentos daquele sonho, foi capaz de recolocar a máscara no local de onde nunca deveria sair, não em horário comercial. Saia de casa, para o trabalho com uma nova identidade, como num ritual, e naquele escritório empoeirado ninguém sabia de suas bebedeiras, ninguém reclamava de seu cd. Era outro. A sociedade não via, era um perfeito anônimo, seus colegas de trabalho confundiam seu nome e ele nem ao menos corrigia, afinal what's the point again? Era um funcionário exemplar, cumpria metas, fazia o que lhe pediam, cumpria horas extras, resolvia problemas ao invés de criá-los.

Não era visto pelo mundo então em seu particular não via o mundo, como uma exemplar revanche. Não lia jornais. Não tinha televisão. Não tinha mais que dois conhecidos. Não tinha nada além do melhor wisky que seu indiferente salário poderia comprar e um toca discos que todas as noites reproduzia o mesmo cd. Roupas surradas que ele mesmo lavava a mão e passava com o esmero de quem esconde algo. Era dois. Talvez três. Não, era só dois mesmo.

Mais uma noite, o mesmo sonho. Lembrou-se da primeira vez que esse amargo sonho lhe ocorreu. Tinha 6 anos. Pediu ao pai um urso que falava, tinha visto no comercial da televisão, assim como propaganda de miojo, coisa boba. Seu pai disse que não compraria mais um brinquedo, afinal para que tantos brinquedos? Sua reação ainda é assunto da família nas noites de natal: empilhou todos os seus brinquedos no quintal e ateou fogo. Agora poderia ter um urso que fala já que não tem mais nenhum brinquedo. Ao saber do ocorrido, por razões, óbvias seus pais nunca mais lhe compraram nenhum brinquedo. Rebeldia infantil tem cura, não se preocupe, meu bem. Até que em um almoço de família sua prima idiota de dois anos que nem ao menos sabia falar o próprio nome aparece com o urso que fala, e fala mais que ela por sinal, fala lindamente em seus ouvidos que era seu, como se no algodão que o enche batesse um coração que o pertencia. Decidiu fazer justiça. Tomou o urso que fala das mãos do bebe babão e lhe arrancou a cabeça, lhe tirou as macias entranhas de algodão e o órgão responsável por sua fala.

Assim aos 6 anos foi o mundo todo, representou a injustiça só então conhecida pelos adultos e entre ele e o resto só havia ele, ele e ele. Sim, ele foi o mundo. E o apogeu de sua existência docemente acabou assim como a fala do urso, mas ao contrário da vida inexistente de um urso para a sua não havia remendos. Assim foi a cegueira de quem não via nada além do eu.

3 comentários:

Gabriel Pozzi disse...

olha só, Crime e Castigo em terceira pessoa! hahaha
só troque a velha pelo urso falante, coloque um pouco de trauma de infância no lugar das teorias de Nietzsche, e encaixe alguma música do nirvana no meio...
muito mais carismático e atraente do que Dostoievski! :)

s2

Anônimo disse...

adorei, adorei de verdade! :D

Deyse Batista disse...

Esses texto me deu uma sensação de inquietude que eu não consigo descrever. Acho que tô ficando rebelde, também, hahaha.
Adoro quando você descreve grandes sentimentos em atos que poderiam ser pouco significativos... Sempree resulta em uma obra-prima! Muito bom, como sempre :)
Beijos!

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